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A Função Social do Artista

I - O problema da função social do artista surgiu quando este deixou de a ter.
Que era o artista na Pré-História? Um feiticeiro, ou xamã, que exercia determinadas funções consideradas importantes pela tribo. Era uma espécie de intermediário entre a sociedade e as forças ocultas da Natureza, supostamente animadas. A sua função, era neutralizar as más energias e atrair as boas. Naturalmente, tal atividade não poderia, a rigor, ser denominada “artística”, no significado que hoje atribuímos a essa palavra. Com a evolução da humanidade, o então artista confundiu-se com o sacerdote das civilizações agrárias, que já não eram dependentes de meras invocações ou rituais mas que possuíam uma bagagem de informações e conhecimentos, que poderíamos qualificar de pré-científicos. Mais tarde, o artista assume uma função particular: a de ilustrar os mitos coletivos, ou a de celebrar a sacralização do poder público. Só lentamente, à medida que a aristocracia principia a formar-se, nasce um novo tipo de arte: a que confere fausto e brilho aos “novos ricos” da época, o que se vê, por exemplo, nas mastabas do Egito, e bem mais tarde, na arte suntuária romana.
"Uma mastaba é um túmulo egípcio, era uma capela, com a forma de um tronco de pirâmide (paredes inclinadas em direção a um topo plano de menores dimensões que a base), cujo comprimento era aproximadamente quatro vezes a sua largura. Começaram-se a construir desde a primeira era dinástica (cerca de 3500 a.C.) e foi o gênero de edifício que precedeu e preparou as pirâmides. Quando estas começaram a ser construídas, mais exigentes do ponto de vista técnico e economico, a mastaba permaneceu a sua mais simples alternativa. Feitos de tijolo de lama ou pedra, estes montes gigantescos cobriam câmaras de funeral que eram profundas e só eram alcançadas através de poços longos. As pirâmides se desenvolveram da mastaba e, segundo a teoria, a primeira pirâmide de degrau de Djoser em Saggara (ao lado - clique na imagem) era originalmente uma mastaba que tinha placas quadradas menores ao seu redor. Há milhares de mastabas em todo o Egito, muitas delas ricas com pinturas de paredes. Ao contrário das pinturas nas pirâmides que só retratavam a vida da corte, estas pinturas eram uma grande fonte de informação para a vida diária". (Wikpédia) e aqui

Durante o domínio da arte cristã, o artista simplesmente ser converte em servidor do Evangelho e das preocupações teológicas da sociedade. Podemos dizer que, somente com Giotto, aparecem as poéticas individuais, ou seja, as expressões originais do artista que principia a emancipar-se das imposições, tanto do poder religioso como do poder civil.

Que acontece, porém, no Renascimento? A função social do artista persiste, porém submetida aos novos donos do poder, isto é, aos grandes mercadores que se unem à aristocracia e à própria igreja, a qual passa a ter maior poder político. A situação praticamente não muda até aos primórdios da civilização moderna, quando os valores ideológicos dominantes, os valores religiosos, monárquicos, etc. são substituídos pelos direitos do homem, estendidos teoricamente a todos os membros da sociedade, e nasce um novo tipo de economia, que exige uma multiplicidade de funções e responsabilidades diferente das anteriores. Que acontece com o artista? Por um lado, ganha sua independência (também teórica), convertendo-se em produtor de bens para o consumo, bens obviamente, super-especializados, acessíveis, seja por imposição da cultura, seja por imposição da situação econômica, a apenas alguns indivíduos, pertencentes às novas classes, cada vez mais heterogêneas e conflitantes entre si. É precisamente aqui que se levanta a questão da função social do artista. Afinal, para que serve a arte? Quem a adquire? Como viverá o artista numa sociedade em que desapareceram os mecenas (a monarquia, a igreja, os príncipes, as irmandades religiosas, os grêmios, etc.)? Terá o artista que sustentar-se por si próprio, sem o apoio oficial? Goya morreu no século passado, quando Géricault e Delacroix começavam a impor-se. Quem sustentava Goya? Em última análise, a aristocracia e a igreja. Quem sustentava Géricault e Delacroix? O primeiro possuía bens próprios; o segundo também, só que vivia de encomendas oficiais... Na realidade, os artistas, em geral, só principiaram a viver do que produziam a partir dos inícios do século XX. Repitamos: foi então que a questão da função social do artista realmente se impôs, com absoluta clareza, embora ela se tenha gerado no bojo do século anterior.

II - O problema da função social da arte é hoje extremamente complexo. Por um lado, o artista pretende ser original, deseja expressar uma visão-de-mundo única, relacionada com seu próprio temperamento, com sua própria tabela de valores religiosos e sociais. Por outro, ele não é totalmente autônomo: quem vai interessar-se por sua produção? Só há duas soluções: os poderes públicos e os cidadãos particulares. Nesse caso: existirão consumidores (agora é preciso usar esse termo) capazes de financiar o pensamento alheio, os sentimentos e emoções alheias? Quem compra busca um interesse específico, o seu. O consumo, no fim de contas, visa a atender uma demanda singular. Pois bem, que fará o artista? Produzirá de acordo com seus próprios valores, ou de acordo com os valores dos outros? Suponhamos que resolva dedicar-se à produção social. Como conciliar os próprios interesses com os da sociedade já que esta é multicultural, multireligiosa, multipolítica? Até onde é possível conciliar a própria liberdade com as exigências, por exemplo, de uma ideologia? Ou, pior ainda, com os gostos dos compradores?

III - A função social do artista é expressar a sua arte de acordo com a sua própria persuasão íntima, e de acordo com os grandes ideais da sociedade. O problema – como observou um escultor italiano – é que já não temos mitos comuns. Ou, se os temos, são mitos de uma sociedade de consumo, interessada apenas em manter o status quo. Que saída encontrará o artista para tal impasse? Só existem duas saídas: ou ficar fiel a si, às suas próprias convicções; ou aderir a alguma das grandes utopias, e tentar promovê-la. A primeira solução pode levar a uma arte, até certo ponto, solipsista. Pode, também, deixar o artista isolado, e, não raro, sem meios de sobrevivência. A segunda solução o conduzirá ao sectarismo, à afirmação sistemática de uma visão determinada por exigências políticas. Digamos que o artista prefira uma espécie de solução central: terá, então, de curvar-se às exigências do dinheiro, das galerias de moda, dos apelos paroxísticos da mídia.

IV - Função social da arte? Só vejo uma, nas atuais condições: a da busca solitária (até certo ponto) do artista, que declara lealdade a si mesmo, e a tudo o que é humano. Até agora, a arte defendia “o humano relativo”, aquilo que, em determinada época, era considerado humano (e às vezes era inumano). Estamos, porém, razoavelmente esclarecidos para não sermos outra vez tapeados, e para não tapearmos. Ou seja: o humano, após dois mil anos de Cristianismo, sem contarmos os milhares de anos de Confucionismo, Taoísmo, Budismo e Islamismo, já está suficientemente iluminado para não cairmos nas trevas da barbárie, mesmo de uma barbárie tecnológica. A função social da arte, hoje, é não arredar pé do humano, não abrir mão dos direitos mínimos do cidadão.

V. Recentemente, um cientista, David Haig, Professor-Assistente de Biologia Evolucionária da Universidade de Harvard, respondendo à pergunta: “Quais as 200 maiores invenções dos últimos 2.000 anos?”, observou: “Minha sugestão (...) é o computador, pela forma como amplia as capacidades da mente humana para executar grande número de cálculos e acompanhar e acessar vastos corpos de dados. (...) Do lado escuro, porém, está a perda de intimidade e o maior potencial de controle social possibilitado pela capacidade de manipular grandes bancos de informação pessoal”. Sim, o grande perigo, que assedia nossa civilização, é perder sua intimidade, ou melhor, sua liberdade, e cair numa sorte de escravidão atômica, múltipla, invisível. Que fará o poeta (e o artista em geral) numa situação dessas? Tentará, até o fim, manter-se “animal racional”, imagem e semelhança de Deus, senhor de seu destino e de seus amores. O poeta se servirá da “santa linguagem” (Paul Valéry) e não cederá perante a avalanche de “informações” e palavras vazias que os meios de comunicação lhe jogam sobre a cabeça. Continuará pensando e sentindo por própria conta, mesmo que deva afrontar uma situação semelhante à do personagem da peça “O Rinoceronte” de Ionesco. Ainda que todos se rinocerontizem, ele desejará não ser rinoceronte, mas simplesmente homem.

VI - O capitalismo global, que se estabeleceu no mundo ocidental, criou uma situação difícil para o artista. Primeiramente, porque não lhe interessa uma arte – a única possível – que não o siga como um cachorrinho. Em segundo lugar, porque lhe interessa uma arte que, mantendo a máscara da arte, prive o artista da liberdade de produzir fraturas no mecanismo sócio-econômico que o envolve. Que arte, pois, será favorecida pelo capitalismo globalizado? A arte escandalosa das pseudo-rupturas, a arte que, no entender dele, preenche uma função social, a de fornecer circo e pão às multidões. Portanto, tachará de arte intimista qualquer arte que, rigorosa nos seus métodos de pesquisa mítica e emocional, levanta questões radicais, que são as questões do destino humano, da vida espiritual do homem, de suas obrigações sociais, numa palavra, combaterá toda arte que reivindique, mesmo afônica, o pão, a liberdade, o trabalho, a saúde, a educação, e um mínimo de lazer. Tachará de arte anacrônica a arte que arvora uma temática de maior alcance que os lucros do capital, ou as benesses da civilização tecnológica. Promoverá, estrondosamente, a arte que superficialmente se apresenta como revolucionária.À luz disso entende-se o espaço que a mídia atribui a “obras-de-arte” que privilegiam a bizarrice, tal como a escultura do Papa João Paulo II, do italiano Maurizio Cattelan, denominada “Apocalypse”, na qual se vê a figura do pontífice abatido por um meteoro. A mídia promove lençóis sujos de urina, fotos de baratas eletrocutadas, bonecas de fezes... “Nessa confusão, diz o crítico inglês Mathew Collings, fica difícil separar o que é arte do que é um truque para aparecer. O que vale é provocar o escândalo, mesmo que não tenha o menor fundamento filosófico”. (Folha de São Paulo, 06-06-2000).

VII - Voltemos à questão primeira: Qual a função social da Arte? A de sempre, se é que alguma vez a teve, no sentido profundo da palavra. Ser a favor do que, no homem, é básico, mesmo que ninguém o veja, a não ser ele o pintor, o poeta, o cineasta... Contra, quando se atinge aquilo que, no homem, é também básico: a sua liberdade política e religiosa. Não creio, porém, que isto possa ser um ideal do artista, a não ser que ele possua uma fé profunda numa grande religião, ou seja movido por emoções animais básicas, essas que nem a tecnologia mais refinada podem suprimir. Afinal, trata-se disto: o artista é, antes de mais nada um homem, e nada do que é verdadeiramente humano lhe é estranho.

VIII - Existe, portanto, o problema da função social da arte. Mas, antes desse problema, existe outro: o problema da sobrevivência do artista como artista. É oportuno não avançar “profecias”. Como sobreviverá o artista numa sociedade como a nossa? Poderá ainda pintar? Poderá escrever poemas? Poderá escrever romances? Poderá fazer filmes, não só comandados por grandes companhias, mas como autor independente? Haverá público para tais artistas? As previsões não são das mais róseas. Se o grande público continuar massificando-se, quem terá gosto pessoal para buscar iguarias mais saudáveis e saborosas? Aliás: quem terá dinheiro para se salvar no dilúvio? A arca-de-Noé do passado salvou um par de cada tipo de animal. A possível arca-de-Noé do futuro levará, no seu bojo, um só casal? Eventualmente um robô e sua companheira? Não sejamos tão pessimistas! A humanidade sempre soube encontrar antídotos para as suas loucuras. A arte ainda tem chances. Tem chances não só de sobreviver, mas de assistir aos funerais de um sistema sócio-político. Armindo Trevisan

10 comentários:

  1. Tomara que a arte sempre consiga sobreviver, como ele diz na conclusão, pois é a garantia da expressão do espírito humano.
    Beijos e uma boa semana para você.

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  2. Concordo contigo. Mas acho que a arte pura e simplesmente pela arte, quase não existe. Tudo começa, sim, através da beleza, do arrebatamento que ela causa lá dentro, mas a partir do momento em que o artista poe pra fora a forma do que sentiu por dentro, a arte passa a ter uma função no mundo, e nem sempre está sujeita a desígnios pré-estabelecidos.
    Esta é minha humilde opinião. Li e reli o texto, mas não sei se estou á altura de compreender-te bem. Pelo menos eu tentei. És muito sábio. parabéns. Més félicitations et au revoir!
    PS.: J'attends ton rendez-vous chez moi!

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  3. Gostei muito do "ERES LO QUE LEES"...

    belo blog,

    um abraço,

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  4. ” A alma é invisível,
    Um anjo é invisível,
    O vento é invisível,
    o pensamento é invisível, e,
    no entanto, com delicadeza,
    se pode enxergar a alma,
    se pode adivinhar o anjo,
    se pode sentir o vento,
    se pode mudar o mundo com alguns pensamentos.”

    Boas festas...

    Olavo.

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  5. Estou passando por aqui para lhe desejar Feliz Natal e Próspero Ano 2010, junto de familiares e amigos.

    Abraços,
    Lumena

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  6. Que tua alma seja o cais que nele ancore toda a emoção, ternura e criatividade como este belo poema nesse Ano que se inicia! Bom Ano Novo! Beijo

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  7. A arte é a forma mais intensa de demonstrar o que o artista tem em seu talento, talento esse que vem de Deus, e é dado à cada um de maneira tão especial.
    Deus à abençõe

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  8. A Arte imita a vida? ou a vida imita a Arte?
    Apenas uma dessas alternativas tem função social. A arte q induz, conduz, e impulsiona novos conceitos tem apenas a condição de alienar. Dentre os Artistas, o mais fiel à função das artes foi Giotto. Cada tela vc tem uma lição para a sociedade. Leituras sensacionais!... Pena q nem todos os artistas tem essa responsabilidade social de colocar intrinsicamente q seja, em sua obra, uma coadjuvância à promoção do bem estar social. Hj vemos apenas muito do contrário. Pena!, peníssima!... Ou não? (Lene Angeli)

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  9. adorei a historia do artista na sociedade e mt bom e interesante

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  10. Ótimo texto apresentou pontos de vistas e elementos esclarecedores à minha humilde pesquisa.

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